“O homem que ‘transformou’ Emília em David e assombrou BH há 100 anos”
15 de outubro de 2025 | Entrevistas, Imprensa, Notícias | por Dionne Freitas
Introdução / Contexto
A matéria resgata um episódio médico e social envolvendo Emília Soares e o médico David Corrêa Rabello que ganhou repercussão em Belo Horizonte ao longo do mais de um século. Em 1917, na então capital mineira, Emília — criada como mulher, estudante do curso normal — era levada ao médico porque, aos 19 anos, não menstruava.
O médico David, já formado no Rio de Janeiro e com especializações na Europa, identificou que havia uma “malformação sexual”, e realizou procedimentos que viriam a alterar a trajetória de vida do paciente.
A série de reportagens “De Emília a David – Vidas em transição” explora esse caso pioneiro e controverso, situando-o no contexto social e científico da época.
A reportagem é bem construída ao conciliar narrativa humana, histórico da medicina e implicações sociais. Ponto forte é a contextualização: ela nos leva à BH de 1917, às mentalidades da época, ao avanço científico e aos constrangimentos culturais.

O caso real de Emília Soares, jovem belo-horizontina criada como mulher, que em 1917 foi examinada pelo médico David Corrêa Rabello. Aos 19 anos, Emília não havia menstruado, o que motivou a ida ao consultório. O médico, formado no Rio e com estudos na Europa, diagnosticou uma hipospádia (malformação genital), concluindo que a paciente possuía características masculinas e poderia “viver como homem”.
O episódio ganhou enorme repercussão na capital mineira do início do século XX, uma cidade pequena, conservadora e marcada pela moral católica. Após a cirurgia, Emília passou a se chamar David Soares, vestia terno, casou-se e viveu como homem até sua morte — tornando-se um caso pioneiro na história médica brasileira e na memória social sobre gênero e corpo.
2. A repercussão social e o espanto de Belo Horizonte
A imprensa da época cobriu o caso com tons de sensacionalismo e curiosidade, tratando o acontecimento como “um milagre médico”. O pesquisador Luiz Morando, autor de “Miloca que virou David: Intersexualidade em Belo Horizonte (1917–1939)”, aponta que “a cidade via um de seus conterrâneos deixar os vestidos e passar a usar ternos; trocar o nome Emília por David — e isso era motivo de espanto, boato e comentários”.
As reportagens do Estado de Minas também lembram que, nas décadas seguintes, o nome “David” ainda circulava em histórias contadas de boca em boca. Moradores antigos de bairros tradicionais, especialmente no entorno da Avenida Afonso Pena, ainda se lembravam do “rapaz que antes era moça”.
3. O testemunho da senhora que conheceu David
Um dos pontos mais fortes da reportagem é o depoimento de uma senhora que conviveu com David Soares — trazido pela equipe do Estado de Minas durante a investigação do caso.
Segundo o jornal, essa moradora idosa (identificada apenas como Dona Maria de Lourdes, para preservar sua privacidade) contou que, quando menina, via David pelas ruas e lembrava-se dos cochichos da vizinhança:
“As pessoas falavam baixinho: ‘Olha lá, aquele é o rapaz que era moça…’. Mas ele era muito educado, sempre de chapéu e terno, e cumprimentava todo mundo com respeito. Nunca ouvi ninguém falar mal dele, só estranhar.”
O relato ajuda a humanizar o caso, tirando-o do plano puramente médico e devolvendo-lhe uma dimensão social e afetiva: David não era apenas uma curiosidade de jornal, mas alguém que circulava, trabalhava, cumprimentava vizinhos, casou-se e teve uma vida cotidiana — silenciosa, mas visível.
4. Vida após a cirurgia e apagamento histórico
Depois da transição social e médica, David trabalhou como funcionário público e casou-se com uma antiga colega da escola normal, mas o casal não teve filhos. A ausência de descendentes diretos contribuiu para o apagamento de sua memória.
O pesquisador Morando destaca que, até sua pesquisa em arquivos e hemerotecas, o nome quase não aparecia mais na história oficial da cidade.
A reportagem ressalta o silêncio social: o caso foi noticiado com espanto e curiosidade, mas depois varrido para debaixo do tapete — um sintoma da forma como temas ligados à sexualidade e à diversidade corporal eram tratados no Brasil do século XX.
5. Interpretação crítica e leitura contemporânea
A equipe do Estado de Minas faz uma leitura cuidadosa:
- Evita rótulos anacrônicos, lembrando que “transexualidade” e “intersexualidade” ainda não eram categorias médicas ou jurídicas reconhecidas em 1917.
- Aponta o papel da medicina como instrumento duplo — capaz de legitimar a existência de corpos não conformes, mas também de controlá-los e normatizá-los.
- Ressalta que o caso Emília–David antecipa dilemas bioéticos que hoje atravessam os debates sobre autonomia corporal, consentimento e identidade de gênero.
O jornalista observa que a história “assombrou BH” não porque houvesse algo de monstruoso, mas porque colocava em xeque os limites da ciência e das convenções sociais sobre o que é ser homem ou mulher.
6. Síntese e relevância histórica
A reportagem funciona como documento de memória e reflexão bioética, iluminando:
- a trajetória de uma pessoa intersexo no Brasil há mais de 100 anos;
- o papel de um médico que, ao mesmo tempo, rompeu paradigmas e reforçou outros;
- e o olhar social que transforma a diferença em espanto.
Em suas palavras finais, o texto do Estado de Minas sugere que o caso de Emília/David ainda ecoa nos debates atuais sobre identidade e corpo, convidando o leitor a pensar o passado não como curiosidade, mas como espelho de dilemas éticos e humanos que persistem.
7. Conclusão
O valor da reportagem está em restituir humanidade ao que o tempo apagou.
Ao recuperar depoimentos, memórias de vizinhos e documentos, o Estado de Minas realiza um trabalho de história pública e de ética contemporânea.
A fala da senhora que conheceu David é o coração do texto — a lembrança simples, mas poderosa, de um homem que viveu discretamente sua verdade num tempo que não a compreendia.
📖 Para ler a reportagem completa, acesse:
👉 www.em.com.br/app/noticia/gerais/2022/08/08/interna_gerais,1385210/o-homem-que-transformou-emilia-em-david-e-assombrou-bh-ha-100-anos.shtml
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