DUALIDADE OU CONSTELAÇÃO? INTERSEXUALIDADE, FEMINISMOS E BIOMEDICINA: UMA ANÁLISE BIOÉTICA

1 de maio de 2015 | Artigos | por Dionne Freitas

Os estados intersexuais e as decisões em torno de quais procedimentos devem ser adotados com pessoas nesta “condição” constituem tema de acirrado debate nos campos da biologia, psicologia e biomedicina e fonte de intensas disputas no campo social e moral. As disputas de saberes e práticas envolvem diferentes conflitos bioéticos, como o consentimento de pacientes e/ou familiares para as intervenções médicas, o acesso à verdade sobre a condição, os critérios para a designação sexual e
a necessidade de definição do sexo para o registro civil do recém-nascido.
Atualmente, o manejo clínico dos casos de intersexualidade está pautado em torno de dois modelos: a) Modelo Centrado no Sigilo e Cirurgia (MCSC), proposto por John Money, e b) Modelo Centrado no Paciente (MCP), proposto por Milton Diamond . O MCSC foi desenvolvido a partir dos anos 1950 com base no pressuposto da na preponderância da socialização e da centralidade da anatomia genital na definição da identidade de gênero do indivíduo. O MCP surge nos anos 1990 como uma proposta alternativa, tanto em termos de fundamentação teórica, como em termos éticos. Baseado na teoria da sexualidade inata definida pela influência hormonal durante o
período pré-natal é decorrência de um processo de crítica e revisão ética desencadeados pela revelação dos desdobramentos negativos do caso John/Joan e pelo nascente ativismo intersexo nos Estados Unidos. As normativas que orientam esse manejo clínico, como a Resolução do Conselho Federal de Medicina, no Brasil, e o Consenso de Chicago, adotam aspectos desses modelos. Para melhor conhecer a problemática realizou-se uma análise dos diferentes argumentos mobilizados acerca desses modelos nos discursos biomédicos, teóricos feministas e do ativismo intersexo.
Adotou-se como estratégia metodológica investigar as concepções de sexo, gênero e sexualidade nas obras de John Money e Milton Diamond, e compreender em que medida essas concepções se relacionam com e influenciam sua proposta de manejo clínico da intersexualidade, e apresentar uma reflexão crítica tanto a seus pressupostos teóricos, na voz de teóricas feministas, quanto às questões éticas implicadas em seus modelos de tratamento da intersexualidade, em diálogo com o movimento intersexo. Para tal, buscou-se a literatura dos originais dos principais teóricos/as identificados, combinada com a pesquisa bibliográfica e documental, nacional e internacional, de
estudos sobre a intersexualidade disponíveis em bases bibliográficas acadêmicas na Internet. Para análise bioética dos dois princípios identificados como preponderantes na discussão do manejo clínico da intersexualidade – autonomia e beneficência – adotou-se a perspectiva da teoria ética biomédica dos quatro princípios, largamente conhecida e empregada no meio biomédico e bioético, facilitando o diálogo com diversos atores que atuam diretamente nesse manejo clínico. Conclui-se que a crítica feminista à acepção biomédica do binarismo de sexo e gênero, aliada à perspectiva do
construcionismo social, foi importante subsídio para a formulação da perspectiva crítica do manejo clínico da intersexualidade, até então hegemonicamente definido pelo MCSC. O MCP defende o adiamento das cirurgias estéticas em genitálias ambíguas e o acesso integral do paciente e família aos históricos médicos. A problematização dos aspectos éticos implicados no MCSC e o surgimento do MCP e do ativismo intersexo denotam a transição do paradigma ético no gerenciamento biomédico da intersexualidade, com o paulatino fortalecimento do princípio da autonomia do/a paciente, em detrimento do princípio da beneficência.

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