Desmistificando a Resolução CFM Nº 1.664/2003: Um Olhar Crítico sobre o Tratamento de Pessoas Intersexo no Brasil

Explorando as Consequências e Injustiças da Norma Médica para Pacientes Intersexo.

21 de março de 2024 | Publicações | por Céu Albuquerque
Foto: Canva

A Resolução CFM nº 1.664/2003 (Publicada no D.O.U. em 13 de Maio de 2003, Seção I, pg. 101) é uma resolução que tem sido criticada por décadas por sua abordagem prejudicial e discriminatória em relação às pessoas intersexo. Seu conteúdo promove práticas que violam os direitos humanos e submetem indivíduos a intervenções médicas invasivas e desnecessárias desde tenra idade.

Trecho da norma: “Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual.”

Primeiramente, o termo “anomalia do desenvolvimento sexual” é extremamente perverso e discriminatório. Há muito tempo é utilizado o termo DDS (Diferença do Desenvolvimento Sexual). A única anomalia que percebo é a existência dessa resolução.

Trecho da norma: “Art. 2º – Pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil.”

É altamente antiético e viola quaisquer direitos humanos querer definir o gênero ou sexo de uma criança intersexo sem seu consentimento. Quanto ao tratamento oportuno, este deve ser realizado apenas em situações em que a criança corre risco de vida. Caso contrário, qualquer intervenção médica pode violar os direitos humanos da criança intersexo.

Trecho da norma: Parágrafo 1º – “Durante toda a fase de investigação, o paciente e seus familiares ou responsáveis legais devem receber apoio e informações sobre o problema e suas implicações.”

Parágrafo 3º – No momento da definição final do sexo, os familiares ou responsáveis legais, e eventualmente o paciente, devem estar suficientemente informados para participar da decisão do tratamento proposto.

Nascer intersexo não é “um problema”. O único apoio e informação fornecidos aos pais são para convencê-los de que os corpos de seus filhos estão errados. Não há apoio que assegure os direitos humanos da criança, para defendê-la e protegê-la de um sistema binário que considera errado o corpo de um bebê apenas por ser intersexo. O paciente não é informado, pois a decisão sobre procedimentos irreversíveis é tomada pela equipe médica e pelos familiares, sem considerar a participação das pessoas intersexo.

Trecho da norma: “O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo estão ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos.”

Por que o diagnóstico de uma criança intersexo causa transtornos na sociedade? Quão doentia está nossa sociedade ao considerar o nascimento de uma criança intersexo como algo capaz de desestabilizar uma família e a sociedade como um todo? A falta de naturalização e informação correta ao longo das décadas tem alimentado não apenas a ignorância, mas também a exclusão.

Trecho da norma: “Ninguém pode garantir que, apesar dos mais criteriosos conceitos, a definição sexual tardia dessa pessoa acompanhará o que foi determinado no início de sua vida.”

Se há estudos que indicam que indivíduos intersexo podem crescer e não se identificar com os sexos atribuídos na infância, por que então essas cirurgias são realizadas? O correto seria esperar que o indivíduo cresça, desenvolva sua própria identidade de gênero e tenha o direito de escolher se deseja ou não realizar alguma cirurgia.

Trecho da norma: “Por outro lado, uma definição precoce, mas inadequada, também pode ser desastrosa.”

Se há estudos que demonstram que essas intervenções na infância causam problemas irreversíveis e desastrosos, por que essas cirurgias continuam sendo realizadas?

Trecho da norma: “Há quem advogue a causa de não-intervenção até que a pessoa possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não existem a longo prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais, afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido.”

É verdade que a própria ONU, parlamentares, alguns profissionais de saúde e parte da sociedade concordam que as intervenções só podem ser realizadas com o consentimento do indivíduo, quando este puder autodefinir-se sexualmente. A idade indicada para tratar deste assunto é a adolescência, quando a identidade de gênero e a sexualidade já estão formadas. Em relação à falta de estudos a longo prazo, é importante reconhecer que crianças intersexo têm sido submetidas a cirurgias e tratamentos sem seu consentimento, tornando difícil avaliar o impacto dessas intervenções em suas vidas.

Trecho da norma: “O maior objetivo dessa equipe não será apenas descobrir qual é a etiologia da anomalia da diferenciação sexual, mas sim obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável.”

É alarmante que uma equipe multidisciplinar, segundo a norma, seja encarregada de escolher o sexo mais recomendável para que os familiares criem a criança. Nenhum indivíduo intersexo deseja que uma equipe médica ou familiar escolha ou defina em qual sexo a criança deve se encaixar melhor. É crucial entender que cada ser humano, intersexo ou não, tem o direito de fazer suas próprias escolhas, e a identidade de gênero só é definida ao longo do crescimento da criança, não através de decisões médicas e cirúrgicas.

Trecho da norma: “Compete ao Conselho Federal de Medicina, órgão disciplinador da prática médica no Brasil, a obrigação e o poder legal de normatizar a conduta profissional diante de pacientes com anomalias da diferenciação sexual.”

O CFM concedeu poder aos profissionais de saúde para arruinar de forma irreversível, legal e normatizada a vida de pessoas intersexo. Precisamos modificar esta resolução o mais rápido possível, pois diariamente crianças são mutiladas e submetidas a hormonioterapia em consultórios no Brasil.

Trecho da norma: “Esta intervenção precoce é fundamental para maior fortalecimento emocional e enfrentamento à angústia que a situação provoca. Nesta circunstância, o núcleo social e familiar fica ambivalente e com sentimento de culpa nos primeiros momentos, pois é senso comum que a identidade sexual deve ser construída pelos familiares e sociedade, gerando, assim, forte ansiedade. Os profissionais em Saúde Mental devem considerar o paciente como um ser em desenvolvimento, minimizando as angústias suscitadas no meio social e familiar, ajudando-o a construir sua auto-imagem.”

Este trecho é um dos mais perversos da norma, pois o próprio CFM, juntamente com profissionais de saúde, criou a ideologia de que uma criança intersexo deve ser motivo de vergonha, medo, culpa e angústia para a sociedade e seus familiares. Este conceito culpabiliza as famílias pelo nascimento de uma criança intersexo e reforça a ideia de que a identidade sexual deve ser moldada pelos familiares e pela sociedade, reforçando uma estrutura binária que é prejudicial e transfóbica.

Em uma iniciativa significativa, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil promulgou uma resolução em 17 de maio de 2022, delineando diretrizes fundamentais para a prática dos profissionais da Psicologia em relação às diversas orientações não-monossexuais, incluindo bissexualidade. Esta resolução reflete um compromisso com a autodeterminação de cada indivíduo em relação à sua orientação sexual e identidade de gênero, reconhecendo a complexidade das intersecções entre diferentes marcadores sociais, como território, raça, etnia, classe, geração e deficiências, juntamente com identidades e expressões de gênero. Ao destacar essas considerações, a resolução oferece orientações essenciais para que os profissionais da Psicologia atuem de forma ética e inclusiva, promovendo o respeito pela diversidade e a valorização das experiências individuais de cada pessoa.

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a equipe multidisciplinar deixa de incluir obstetras e ginecologistas, o que é surpreendente, considerando o vínculo essencial que o obstetra estabelece com a gestante. Esta exclusão pode interromper o apoio crucial à mãe e ao bebê, além de potencialmente favorecer pressões médicas desnecessárias.

Profissionais que participam desse tipo de prática devem ser responsabilizados, e medidas rigorosas devem ser tomadas para garantir a proteção e os direitos das pessoas intersexo. A ABRAI (Associação Brasileira Intersexo) é uma das poucas organizações sociais que tem lutado por mudanças nesse sentido, buscando a modificação dessa norma em prol da proteção das pessoas intersexo e de seus direitos.

Referência: Resolução CFM nº 1.664/2003 (cfm.org.br)

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