Decisão histórica: inclusão da opção “intersexo” no cadastro de CPF impulsiona reconhecimento e inclusão das pessoas intersexo no Brasil

Avanço judicial marca reconhecimento e inclusão de pessoas intersexo na sociedade brasileira.

2 de abril de 2024 | Imprensa | por Céu Albuquerque
Thais Emilia-presidente e fundadora da ABRAI e Shay Bittencourt- vice-presidente e fundador da ABRAI.

Uma conquista histórica para a comunidade intersexo foi alcançada na última segunda-feira (1), na Seção Judiciária do Paraná, mais precisamente na 5ª Vara Federal. A Juíza Federal Anne Karina Stipp Amador Costa emitiu uma decisão histórica que impacta diretamente na forma como as pessoas intersexo são reconhecidas nos documentos oficiais.

A magistrada em sua decisão, destacou a distinção entre sexo e gênero ao afirmar que a intersexualidade é uma questão biológica, não se confundindo com a autoidentificação de gênero. “As pessoas intersexo podem ser não binárias e podem se considerar mulheres, o que marcaria sexo feminino, ou homens, o que marcariam do sexo masculino“, declarou a juíza.

O processo, iniciado há três anos, foi representado e protocolado pelos advogados da ABRAI, Moni Porto e Marcel Jeronymo, em colaboração com o presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis. Eles lutaram incansavelmente pela inclusão da opção “intersexo” no cadastro de CPF, compreendendo-a como um passo essencial para assegurar a dignidade e o reconhecimento das pessoas intersexo na sociedade.

Segundo Thaís Emília, presidenta da ABRAI, “esta conquista é de extrema importância, pois permitirá o levantamento do número da população intersexo no Brasil através do CPF. Esta vitória é monumental, pois agora seremos capazes de efetivamente contabilizar as pessoas intersexo em nosso país, graças à mudança na separação entre gênero e sexo. Isso significa que qualquer pessoa, independentemente de seu gênero, poderá indicar se é intersexo ou não ao preencher seus dados no CPF, não se limitando apenas àqueles que realizaram a retificação para intersexo. Essa petição surgiu em resposta à demanda que levantei durante nossas reuniões, pois muitos bebês intersexo ficam sem CPF, incluindo meu filho Jacob, que também enfrentou essa situação. É crucial enfatizar que essa demanda parte de mim, como mãe de uma criança intersexo e como mulher intersexo, e que foi protocolada pela ABRAI em colaboração com a Aliança Nacional LGBTI+.

Marcel Jeronymo, advogado e um dos representantes do processo, destacou que “a ação teve início em 2021 com o objetivo inicial de resolver a questão dos casais homoafetivos que tinham a indicação de “mãe” no CPF. Após uma ampla articulação com diversos órgãos e entidades, como a DPU, Ministério Público Federal, Aliança Nacional LGBTI, Grupo de Dignidade, Abrafh e ANTRA, foi possível protocolar a ação, que abrangeu também o reconhecimento das pessoas intersexo, travestis e não binárias“.

Marcel ressaltou o impacto significativo dessa decisão judicial para a população intersexo em todo o Brasil, indicando um avanço na compreensão e educação sobre a realidade das pessoas intersexo. Ele destacou os desafios enfrentados pela comunidade intersexo, incluindo a falta de compreensão por parte da sociedade e até mesmo dentro do próprio movimento LGBTI+. Marcel enfatizou “a importância de ter dados concretos para alcançar o reconhecimento adequado dessa população pelo Estado, e a inclusão da opção intersexo em todos os CPFs brasileiros é um passo importante, embora devamos discutir a logística desse cadastramento, tanto para os novos quanto para os antigos CPFs. Com essa informação disponível para toda a população brasileira, será muito mais viável desenvolver políticas públicas que atendam às necessidades dessa comunidade de forma eficaz e regular. É essencial que a pauta intersexo esteja integrada ao movimento LGBTI+ e que haja uma compreensão ampla das vivências e desafios enfrentados pela população intersexo. A ABRAI desempenha um papel fundamental nessa articulação e contribui significativamente para a construção dessa agenda“.

A partir do pedido apresentado pela parte embargante, a sentença foi modificada para incluir a opção “intersexo” em um campo próprio no cadastro de CPF. Essa decisão representa um avanço significativo na inclusão e no reconhecimento da intersexualidade pela Justiça Federal.

Para o estado brasileiro, foi defendido “a implantação de regramento específico no campo sexo do CPF, sem o devido ajuste no cadastro de origem da informação, poderá resultar em apontamento de inconsistência cadastral nos dados da pessoa física […] Nesse contexto, inserir informações não previstas nos demais sistemas interligados, em particular a inclusão no campo sexo das opções: não binário e intersexo comprometerá inúmeros sistemas estruturados e integrados com base em regramento padrão, trazendo insegurança e podendo comprometer o ecossistema que trata da identificação do cidadão“.

Porém, para a magistrada,Contudo, tal objeção técnica não é suficiente para afastar o determinado em sentença, sendo apenas questão de compatibilização dos sistemas“.

De acordo com Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, todas as conquistas que estamos obtendo para a comunidade LGBT têm seu futuro fundamentado na Constituição Federal. Ele enfatiza que todo ser humano, independentemente de qualquer característica, deve ter seus direitos garantidos. Reis destaca a importância de termos dados sobre as pessoas, inclusive para as pessoas intersexo. Ele explica que a partir de denúncias de discriminação e falta de sensibilidade por parte de setores do Estado brasileiro, reuniram-se provas das dificuldades enfrentadas pelas pessoas. Com o auxílio de uma equipe de advogados, foi possível alcançar uma reversão que foi crucial para a cidadania plena da comunidade LGBT em nosso país.

Perguntado sobre às próximas metas, Reis ressalta algumas prioridades no judiciário, “como a questão da interpretação do uso dos banheiros e a luta contra projetos de extremistas de direita que visam isolar e discriminar pessoas trans em diversos âmbitos sociais. Ele afirma que é necessário enfrentar esses desafios com determinação. No executivo, destacam-se as necessidades de uma educação inclusiva e o combate à violência e ao bullying nas escolas. No legislativo, almeja-se a aprovação do estatuto da igualdade e do estatuto das famílias, buscando proteção e garantia de direitos para todas as famílias”.

Reis enfatiza que toda conquista altera o panorama e considera importante destacar a decisão de reconhecer as pessoas intersexo, pois traz luz a uma comunidade frequentemente invisibilizada. Ele reconhece que essa foi uma decisão acertada da Aliança Nacional LGBTI+ e da Abrafh (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas), sendo pioneiras ao reconhecer o “I” da sigla intersexo. Reis defende a implementação de políticas públicas inclusivas, garantindo que ninguém seja deixado para trás.

Ele destaca a área da saúde como especialmente importante, mencionando que “o nascimento de uma pessoa intersexo é uma situação complexa que demanda sensibilidade e discussão. Reis expressa sua preocupação com a prática da mutilação de pessoas intersexo, citando exemplos de congressos nacionais e internacionais onde pessoas foram submetidas a essa prática. Ele acredita que é um bom momento para aprofundar o debate e buscar educação sobre essa questão“.

Além disso, a decisão judicial também abordou a questão da indicação do ascendente no CPF. Determinou-se a substituição do campo “nome da mãe” pelo campo “filiação”, possibilitando a inclusão de qualquer ascendente sem prejuízo. Desta forma, não será necessário impor a inclusão de mais de um ascendente, permitindo que qualquer um deles seja informado no cadastro de CPF, sem prejudicar a possibilidade de que a Administração Pública estabeleça um critério de preferência, caso não permita a inclusão de todos.

Segundo a advogada Moni Porto, uma das representantes do processo, “o impacto da decisão da Justiça Federal é de extrema importância. Considerou-se que começaremos a ter dados oficiais de pessoas intersexo, o que é vital para a construção de políticas públicas direcionadas a essa população. O principal desafio foi fazer com que a juíza compreendesse a necessidade de separar o sexo do intersexo, visto que no Brasil registra-se o gênero no lugar do sexo. Por isso, solicitamos que uma pergunta fosse incluída separadamente para que a pessoa pudesse responder se é intersexo ou não, e esse pedido foi acatado após recurso. A partir desse registro normativo da existência de pessoas intersexo no Brasil, poderemos exigir direitos constitucionais que são negados à população intersexo, como o direito à saúde. Muitas vezes, essas pessoas enfrentam dificuldades para realizar cirurgias pelo sistema de saúde por serem intersexo. Um exemplo é a prótese mamária em mulheres intersexo que nascem sem mamas, ou a cirurgia de resignação sexual. Esses são direitos que a população trans já possui, mas que a população intersexo ainda luta para conseguir“.

O maior desafio, na minha opinião, é o acesso à saúde especializada. Muitas vezes, as pessoas intersexo se submetem a pesquisas em universidades públicas para obter o tratamento adequado, o que considero terrível. Fala-se tanto em não usar animais como cobaias, mas usam pessoas que só assinam o termo de consentimento porque, se não o fizerem, não terão acesso ao tratamento, completa a advogada”.

Essa decisão reflete não apenas uma evolução no reconhecimento da intersexualidade, mas também uma maior adequação dos documentos oficiais às diversidades familiares e individuais da sociedade contemporânea.

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