Após desabafo de influenciadora, especialistas explicam o que significa ser intersexo

Karen Bachini publicou vídeo falando sobre os desafios que enfrentou até identificar suas características

24 de março de 2023 | Artigos, Eventos, Imprensa, Notícias | por Thais Emilia
A influencer Karen Bachini desabafou sobre sua vivência

Na noite de terça-feira (21), a influenciadora digital Karen Bachini postou um vídeo em seu canal no YouTube, em que afirma ser pessoa intersexo. A publicação, além de um relato de vivência, buscava chamar atenção dos seguidores para uma condição que, segundo estimativa do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), pode afetar até 3,5 milhões de indivíduos no Brasil.

Pessoas intersexo nascem com características sexuais que não se enquadram nas normas médicas e sociais típicas de corpos masculinos ou femininos, binárias — o que inclui genitais, padrões cromossômicos, gônadas (ovários e testículos) e hormônios. As informações são da cartilha Visibilidade Intersexo, elaborada em novembro do ano passado pelo Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e de Gênero da Defensoria Pública do RS (Nudiversi) em parceria com a Associação Brasileira de Intersexos (Abrai).

Uma pessoa intersexo pode, por exemplo, ter órgãos internos e externos femininos, mas não produzir os hormônios correspondentes, conforme explica a defensora pública Aline Palermo Guimarães, dirigente do Nudiversi:

— O reconhecimento da intersexualidade pode acontecer logo ao nascimento, em razão de características externas, mas é possível que essas variações somente venham a ser percebidas durante a puberdade e a vida adulta. Existem casos, por exemplo, de pessoas que se descobrem intersexo quando não começam a menstruar dentro do período esperado — diz Aline.

— Naquela época, foi dito que eu tinha menstruado em alguma parte da minha vida e entrei na menopausa. Só que sempre achei isso muito estranho, porque, se eu tivesse menstruado, eu saberia. Foi imposto esse diagnóstico e também imposto que eu deveria fazer hormonização feminina — relatou a influencer.

Sem estar ciente da condição de intersexo, Karen seguiu a orientação médica e passou a tomar pílula anticoncepcional para repor os hormônios femininos que seu corpo não produz, o que desencadeou nela a puberdade pela qual seu corpo não havia passado na adolescência e desenvolvendo características femininas, como o aumento dos seios. Durante uma fase em que resolveu parar por um tempo com os hormônios, viu essas características começarem a desaparecer.

— Quando voltei com os hormônios femininos, voltei com as características femininas. Mas se paro de tomar, perco essas características — comentou.

A influenciadora disse ainda que passou por um processo de não-identificação com o próprio corpo, não queria se olhar ou ser tocada. A situação mudou de um ano para cá, quando começou a fazer suplementação com hormônio masculino também, o que relata ter lhe devolvido a libido e a autoestima. Hoje, ela passa por um processo de aceitação de identidade.

— Ainda não estou satisfeita e não sei o que falta. Acho que é me entender e me aceitar, só. Mas é muito difícil, porque, depois que você começa a pensar “nossa, tem uma parte de mim que é mulher é outra que é homem”, sua visão de tudo muda, e não achei que seria assim. A verdade é que tudo muda — desabafou a carioca.

O caso de Karen é somente um dentro de um guarda-chuva composto por pelo-menos 47 condições intersexo diferentes. Segundo a Abrai, os casos mais comuns são hipospadia, criptorquidia, clitomegalia, micropenis,  síndrome de Klinefelter, hiperplasia adrenal congênita e síndrome de Turner. A associação e a  comunidade intersexo buscam conscientizar e promover respeito  à diversidade dos corpos, tanto na sociedade quanto na esfera médica, ao mesmo tempo em que  incentiva o debate acerca das cirurgias normativas.

A cartilha Visibilidade Intersexo orienta que  as “modificações cirúrgicas nas genitálias de bebês intersexo logo após o nascimento, embora ainda infelizmente comuns, devem ser evitadas, pois são irreversíveis e, nesse momento, ainda não há como saber com qual gênero a pessoa se identificará no futuro”. Recomenda-se que sejam feitas intervenções somente nos casos em que houver risco à saúde.

Entenda a condição

Thais Emília de Campos dos Santos, fundadora e presidente da Associação Brasileira de Intersexos (Abrai), psicanalista e psicopedagoga, esclarece, a seguir, algumas das dúvidas mais comuns sobre o assunto. Ela é também mãe de intersexo, o bebê pseudo-hermafrodita Jacob, nascido em 2016 e falecido em 2018, vítima de uma condição cardíaca. Confira:

 

O que é intersexo?

A Associação Brasileira de Intersexo segue a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que o intersexo são variações corpóreas que podem anatômicas, fenótipos, hormonais ou cromossômicas. Ser intersexo não é apenas ter uma DDS (diferenças do desenvolvimento do sexo), que são as 47 condições corpóreas que causam um corpo com vivências intersexo. Existem algumas situações que ainda não estão registradas, mas que também se encaixam.

A Abrai já encaminhou mais dois casos para a geneticista de uma universidade pública para catalogação. Muitos médicos, quando se deparam com situaçoes novas e não sabem atender, procuram a Abrai e a gente faz essa ponte de encaminhar a grandes centros de pesquisa para investigar melhor o que está acontecendo.

 

Como uma pessoa pode saber se é intersexo?

Através de exames genéticos, como o cariótipo, exames hormonais, exames de imagem e exames clínicos. Não é possível fazer apenas de imagem pois estamos falando de variações das características corporais em relação a genes, hormônios, fenótipo e anatomia. Uma pessoa intersexo pode ter seus exames de imagem mostrando que está tudo dentro dos padrões para determinado sexo, porém sua produção hormonal pode ser alterada, fazendo com que produza determinados hormônios.

Um exemplo é o caso de uma mulher que naturalmente viriliza (passa a apresentar características masculinas). Isso é um estado intersexo. Outro exemplo é um menino que não desenvolve, na puberdade, e as características sexuais secundárias masculina como nascer pelo, engrossar a voz. Também é uma condição intersexo.

 

Casos como o da Karen Bachini, que só se reconheceu intersexo depois dos 30 anos, são comuns? 

São muito comuns. Há casos de pessoas que descobrem aos 70 anos. Isso acontece porque alguma questões intersexo são perceptíveis no pré-natal, em exames de imagem, ou no nascimento — é quando realmente há uma alteração anatômica no genital diferente do que esperado pela medicina.

Mas muitos outros casos vão ser descobertos só na adolescência, no início da puberdade. Como, por exemplo, quando a menina não menstrua ou no caso do menino de 11 anos que começou a ter cólica forte e a fazer xixi com sangue. Fazendo ultrassom, descobriu-se que ele tinha o útero e estava menstruando pelo pênis.

Já outras pessoas descobrem só na vida adulta, quando  estão fazendo tratamento para engravidar. Aí, fazendo alguns exames mais sofisticados, descobre que tem uma condição intersexo. Muitas vezes, a alteração anatômica é interna e não externa, e a pessoa vai descobrir mais tarde na vida adulta por questões hormonais, por exame de imagens etc.

 

Qual a diferença de intersexo e hermafordita?

Hermafrodita é uma condição dentro do intersexo. Além dessa, há pelo menos outras 46 condições intersexo. Todo hermafrodita (ou hermafrodita verdadeiro, como é dito pela medicina atualmente) é intersexo. Porém, nem todo intersexo é hermafrodita, porque há outras condições em que a pessoa pode ser intersexo.

Temos, por exemplo, as condições  pseudo-hermafrodita, temos a pessoa XXY, tem a pessoa X0, tem a hiperplasia adrenal congênita, tem a hipospádia, etc. Todas essas condições, dentre outras, são estados intersexo.

 

Há relação entre intersexo e identidade de gênero?

Não. Intersexo é uma questão corporal, enquanto identidade de gênero é uma questão psíquica, social. Eu conheço pessoas intersexo que se identificam como mulheres, outras homens, outras como não binárias, outras que ao nascimento foram designadas do sexo feminino, mas na vida adulta se identificaram como sexo masculino, e outros casos.

 

O tema ainda é pouco difundido?

Hoje, há escolas fazendo um bom trabalho, explicando sobre corpos intersexo numa perspectiva humanizada. Mas por muito tempo se explicava que isso “existe, é raro e essas pessoas morrem cedo”, ou ainda livros de genética colocando intersexo num patamar de sub-humano.

Muitas pessoas já estudaram intersexo na disciplina de biologia do Ensimo Médio, porém  sem a explicação de que um em cada cem nascimentos é um bebê intersexo. Também há muita subnotificação, já que os casos intersexo notificados ao nascimento são apenas os que tem alterações anatômicas. Então, se você for pensar que a maioria se descobre na puberdade e  na vida adulta, há muito mais.

O assunto é pouco difundido porque também existe muito tabu. O meu filho teve diagnóstico de pseudo-hermafrodita. E aí as pessoas dizem “não existe isso, né?”.Meio que tira o chão das pessoas pensar que existem indivíduos que tem essas variações corpóreas, que não tem um sexo, que não são nem macho, nem fêmea.

 

Porque conscientizar acerca de intersexo?

Porque todo mundo pode um dia ter um filho, sobrinho, aluno ou paciente intersexo, então é importante a gente conhecer para saber lidar. Eu tive um filho, Jacob. Quando ele nasceu, em 2016, confirmou-se que era pseudo-hermafrodita (o pênis era bem pequeno e não havia testículos). Só que, na época, no Brasil, não era  possível registrar o bebê sem saber era menino ou menina, o que achei um absurdo.

Os médicos falaram “então, a gente faz uma cirurgia plástica, uma vagina nele, e você educa como menina”. E eu fiquei “Peraí. Como? Ele é diferente. Se crescer e não concordar com essa cirurgia que foi feita, não tem como voltar atrás”. Não aceitei.

Só que a gente sabe que, mesmo com ONU e OMS sendo contra, considerando crime a cirurgia precoce em bebês, no Brasil ainda é uma prática. Então, os médicos ainda estão muito despreparados em relação a isso.

Questionei, porque já tinha algum conhecimento a respeito, já era professora em faculdade, mas a maioria das mães não questiona por desconhecimento. Por achar a situação toda um absurdo, fiz uma luta em cima disso e, desde 2022, se consegue registrar esses bebês.

Conteúdo publicado originalmente em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/noticia/2023/03/apos-desabafo-de-influenciadora-especialistas-explicam-o-que-significa-ser-intersexo-clfl5rtlr002r016bx6mz32dc.html

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