Segundo Jacqueline de Jesus [1], pessoa Intersexo é aquela cujo corpo varia do padrão de masculino ou feminino, estabelecido culturalmente, no que se refere a configurações dos cromossomos, à localização dos órgãos genitais (testículos que não desceram, pênis demasiado pequeno ou clitóris muito grande, final da uretra deslocado da ponta do pênis, vagina ausente) e à coexistência de tecidos testiculares e de ovários. A intersexualidade refere-se a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos, englobando, conforme a denominação médica, hermafroditas[1] verdadeiros e pseudo-hermafroditas.
Se um testículo desenvolve-se, ele secreta testosterona, que apoia o desenvolvimento dos dutos de Wolff (masculinos), e produz hormônios antimüllerianos, forçando o útero e as trompas de Falópio a regredirem. Se a gônada torna-se um ovário, ela produz estrogênio e a falta de testosterona faz com que o os dutos de Wolff regridam. Os hormônios sexuais ditam, ainda, o desenvolvimento da genitália externa e entram em ação novamente na puberdade, desencadeando o desenvolvimento de características sexuais secundárias, como seios e quadris ou pelos faciais e massa muscular. [2,3]
Além do mais, novas tecnologias no sequenciamento de DNA e na biologia celular revelam que muitas pessoas são, em vários graus, como uma colcha de retalhos de células, geneticamente, distintas, algumas com um sexo que pode não corresponder as demais partes do corpo. [2,3] Essas descobertas não são muito bem-vistas em um mundo no qual o sexo ainda é definido em termos binários. Poucos sistemas jurídicos permitem qualquer ambiguidade no sexo biológico, e os direitos legais e o status social de uma pessoa podem ser fortemente influenciados pelo fato de sua certidão de nascimento indicar masculino ou feminino. [2,3]
Esses avanços propiciaram uma mudança de visão sobre o sexo [4], repercutindo sobre a concepção de pessoas Intersexo. Segundo o psiquiatra e engenheiro biomédico, Vernon Rosario [4], com os avanços dos estudos relacionados à biologia molecular, a visão sobre sexo é modificada, repercutindo sobre a concepção de pessoas Intersexo. A descoberta dos cromossomos, especialmente dos cromossomos sexuais, iniciaram a compreensão genética e molecular da determinação do sexo. Atualmente, discute-se que o processo de determinação e de diferenciação sexual é muito mais complexo do que a ideia de que o cromossomo XX define mulheres e o XY, homens.
Para Rosario [4], algumas pesquisas recentes questionam a presença do gene SRY como condição suficiente para definir o sexo masculino, ocorrendo na sua ausência o desenvolvimento de seres do sexo feminino. Essa visão retratava um olhar testocêntrico, priorizando os genes ligados ao Y em detrimento dos ligados ao X ou autossomos. A existência de Intersexo 46 XX com testículos, mas sem o gene SRY possibilitou repensar a exclusividade desse gene da determinação do sexo, reconhecendo a interação de outros genes como SF-1, WT1, WNT4 e DAX1. Em 2011, pesquisadores mostraram que se um importante gene ovariano (RSPO1) não estiver funcionando normalmente, provocará que XX pessoas desenvolvam um ovotestis (uma gônada com áreas de desenvolvimento ovariano e testicula). [2,3,4]
A utilização de novas tecnologias do campo da biologia molecular [4] questiona que a determinação do sexo envolve apenas a identificação do pênis no ultrassom e dos cromossomos sexuais na amniocentese. Os novos achados da biologia molecular propõem a substituição da visão binária do sexo pela existência de um “quantum”, em que a interação entre dúzia de genes configuraria uma aproximação entre o masculino ou feminino. Em um estudo mais recente publicado na revista Nature [2] Claire Ainsworth afirma que o número de pessoas Intersexo ou com alguma DDS chega a 1 para 100, ou seja, 1% da população, dos nascidos vivos.
Os termos “Intersexo”, “Diferenças do Desenvolvimento do Sexo”, “Distúrbio de Diferenciação Sexual- DDS”, “genitália atípica” e “genitália ambígua” apesar de se referirem ao complexo de situações congênitas em que há desenvolvimento atípico dos cromossomos, gônadas, e/ou anatomia sexual, não tratam o fenômeno da mesma forma. Intersexo é um termo guarda-chuva que foi utilizado, inicialmente, pela medicina para um conjunto de condições de formação nas quais o sexo era atípico. [5] Contudo, no cotidiano médico, essa nomenclatura foi pouco utilizada, predominando, até o início do século, os termos hermafrodita e pseudo-hermafrodita.
Não se pode deixar de mencionar que a primeira vez que o termo “estados intersexuais” foi em 1917, pelo médico alemão Richard Goldschimt. [6] As categorias diagnósticas e as definições dos fenômenos orgânicos envolvem uma intrincada rede de saberes e poderes socioculturais. Esses fenômenos, na dimensão coletiva, ganham significados que os articulam ou mesmo os excluem, ganhando ou não concepção de doença. No caso da cultura ocidental, de base judaico-cristã, amplamente influenciada pela filosofia Grega, é notório que o nome hermafrodita, tenha ganhado muito mais força, mesmo no meio biomédico. De acordo com Sutter [7], o conceito de Intersexo, disseminado pelo campo biomédico até a década de 1990, fortaleceu-se com a existência de desequilíbrio entre fatores da determinação do sexo. O indivíduo possui caracteres tanto masculinos, quanto femininos, e, na presença desse conflito, apresenta-se o indivíduo Intersexo. Contudo, a palavra Intersexo não foi formalmente adotada pelos médicos como um termo diagnóstico, sendo apenas utilizada elaborações teóricas e acadêmicas. [8]
Na sociedade ocidental, a intersexualidade vem à tona por meio do discurso biomédico, sendo considerada, por diversas áreas da medicina, como consequência de uma desordem orgânica ou doença em si. Os saberes de saúde legitimam o Intersexo como patologia e destinam seus esforços ao diagnóstico e tratamento precoce. Por décadas, disseminou-se a visão da intersexualidade como situação de emergência médica, por a considerar como emergência pediátrica no recém-nascido ou como emergência psicossocial ao afetar a família e a saúde psicológica da criança. [9]
Nesse contexto da biomedicina, a noção de intersexualidade inclui uma multiplicidade de “diagnósticos”. Maciel-Guerra e Guerra Jr [10] consideram a distinção nas seguintes categorias: hermafroditismo verdadeiro, gônada disgenética, testículo disgenético, pseudo-hermafroditismo masculino e pseudo-hermafroditismo feminino. O hermafroditismo verdadeiro refere-se à coexistência de tecido ovariano e testicular em um mesmo indivíduo associada a ambiguidade genital interna e externa. As gônadas disgenéticas são constituídas somente de tecido fibroso sem função hormonal ou produção de gametas. O testículo disgenético é associado à baixa produção de andrógenas e baixa produção de hormônios antimüllerianos, mas com virilização dos genitais externos. No pseudo-hermafroditismo masculino, há presença de testículo e a ausência ou deficiência da virilização dos genitais externos, e eventuais internos, em indivíduos geneticamente 46 XY. No pseudo-hermafroditismo feminino, ocorre a virilização dos genitais externos de indivíduos com ovários e, geneticamente, 46 XX.
Em uma nova proposta de classificação feita por Lee e Col [11] resultando na publicação de “Consenso sobre Manejo de desordens Intersexuais”, conhecido no meio acadêmico como “Consenso de Chicago”, estimula-se uso da nomenclatura “Desordem do Desenvolvimento Sexual” consideradas “menos estigmatizantes” do que o hermafroditismo e Intersexo, incluindo a sigla DDS junto com o cariótipo (46 XY ou 46 XX), o que é amplamente discutido e debatido por médicos e ativistas, se essa mudança realmente trouxe alivio ou se fortaleceu o estigma e a própria patologização.
[1] O termo hermafrodita está em desuso em humanos, é usado apenas para animais que são monoicos, como humanos são dioicos, essa característica fica melhor descrita como estado intersexual, como já mencionava Richard Goldsmith 1917, sendo aderido pelo ativismo Intersexo, por aliviar toda a carga negativa que a palavra hermafrodita carrega devido as demonizações, realizadas durante todo período da idade média e moderna, além de ser afetada pela heterocisnormatividade.